quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Meninices

     Eu estava com oito anos, quando conheci Jean. Minha família mudou-se para um prédio bem ao lado da casa dele. Tínhamos a mesma idade e frequentávamos a mesma escola. Diferente de mim, Jean era um menino de rosto fechado. Parecia estar sempre aborrecido com alguma coisa. Como éramos vizinhos, desde o começo tentei fazer amizade. Ele nem olhava na minha direção. Aquele jeito emburrado me intrigava. Fiquei amiga de outras crianças e todas me diziam para não dar bola, pois Jean nascera de mal com a vida. Mas eu não conseguia entender o motivo para tamanha irritação. Ele morava numa casa bonita, com uma família estruturada. Até uma bicicleta maneira ele tinha! Por que não sorria de vez em quando, pelo menos? Resolvi tentar ajudá-lo, depois de passados três meses sem vê-lo sorrir uma única vez sequer.

     Como é possível uma pessoa não sorrir, não achar graça de nada? Nem um sorrisinho amarelo ele dava.

     Eu e meus amiguinhos nos reunimos e decidimos que devíamos agir. Meu vizinho precisava de ajuda, urgente! Arquitetamos um plano infalível. Com certeza daria certo. Sempre que alguém estivesse com ele, ou perto dele, contaríamos uma piada bem engraçada. Não teria como ele resistir.  

     O primeiro escalado foi Maurício. Contou uma piadinha de papagaio. Curtinha, do tipo que faz a gente trazer o riso, sem ele querer vir. Bom, ao menos conosco, porque se Jean sorriu foi por dentro. Os músculos da face nem se mexerem. Que desconcertante! Teríamos que planejar melhor. Ele realmente era duro de fazer rir.

     No dia seguinte, foi a vez de Pedrinho. Assim que teve oportunidade, lascou direto a pergunta:

     - Sabe a piada do Joãozinho?

     - Não! - respondeu Jean, desinteressado.

     - É assim, escuta só: “A professora pergunta pro Joãozinho, quanto são cinco mais cinco? Ele pensa um pouco, conta nos dedos e responde: dez. Ah, não vale contar nos dedos, diz ela. Coloca as mãos nos bolsos. Isso, agora responde, quanto são cinco mais cinco? Joãozinho conta em silêncio  e fala: onze, professora.”

     - Já acabou? Então eu vou indo, porque minha mãe está me esperando - falou Jean. 

     Incrível! Como não achou graça da piada? Joãozinho conta os cinco dedos de um bolso, o tiquinho no meio e os cinco dedos do outro bolso. Bobinha, é verdade, mas acho engraçadíssima. A primeira vez que me contaram tive um acesso e quase me mijei de rir. É, teríamos que mudar de tática, o caso dele parecia mais grave do que pensávamos. Agora tornara-se um desafio, faríamos ele rir de qualquer maneira. Nem que tivéssemos de fazer cócegas.

     Bem, não seria assim tão simples, como descobrimos depois.

     Durante a semana inteira nos revezamos, contando piadas, dizendo bobagens, fazendo brincadeiras do tipo "O que é uma bolinha vermelha escondida atrás da porta? - É uma ervilha envergonhada!"  Rárrárrá! Rimos todos, para ver se contagiávamos Jean.  Nada. Impressionante.

     Combinamos fingir que cairíamos no chão, escorregando em algo imaginário. Foi hilário. Fabinho fez que escorregou em uma casca de banana inexistente e se estatelou de bunda no chão. De novo, nenhuma reação. E olha que foi bem na frente dele. Jean era um caso de internação. Não entendíamos como a família dele não ficava preocupada, com tanta seriedade numa criança. Ele tinha apenas oito anos e não ria de nada. Já estávamos pensando em desistir de nossa intenção, pois tínhamos esgotado nossa cota de piadas, coisas engraçadas e tal. 

     Um dia perguntamos: "O que te deixa alegre, feliz, satisfeito? "Não sei, não me ocorre nada agora." - respondeu  ele, bem assim, como um homem sério, sem ainda nem ter crescido para tanto.

     Bom, talvez se a gente levasse ele num circo, vendo as trapalhadas dos palhaços, a gargalhada que estava presa se libertasse. O fato é que fomos desanimando. Não sabíamos mais o que fazer. Assim foi que desistimos e o deixamos em paz, pois nossa boa intenção já estava virando uma perseguição. Quem sabe, com o tempo ele aprendesse a sorrir. Afinal, o sorriso é nossa forma de expressar alegria de viver. E isso é algo que acontece naturalmente.

     Algumas semanas depois, já tínhamos nos acostumado com a cara amarrada de Jean. Estávamos todos juntos na frente da casa dele, papeando. "Bah, que coceira no umbigo" - falei. Para nosso espanto, Jean começou a repetir: "umbigo, umbigo, umbigo" e desatou a rir. Riu tanto, que chegamos a ficar preocupados. Rimos juntos, feito um bando de crianças felizes. Como todas as crianças devem ser, não é mesmo?

     Dizem que até hoje ele não pode ouvir a palavra umbigo, que cai numa risada convulsiva.

Rosa Mattos