sábado, 3 de setembro de 2011

No Mar o Tempo Nada

Mergulhado no mais profundo vazio
recuava ante o toque das gentes,
o encostar das mãos e o cheiro
do povaréu.

Daí que partiu mar adentro
onde o tempo segue na
correnteza viva, mas
sem gentes.

Quanto mais se afastava das
multidões, tanto mais se
sentia parte do oceano
e livre como nunca.

Por lá ficou navegando meses sem fim
até uma manhã onde despertou
assustado no barco à deriva
e gritou aflito ao mar:

- “O que sou, afinal?”
O oceano parecia lhe dizer,
com o barulho das ondas:
nada! tudo! nada! tudo!...

Ciente de que onde quer que fosse
levaria gente com ele, sendo gente ele também,
mergulhou até o fundo e num peixe se tornou.

Rosa Mattos

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Meninices

     Eu estava com oito anos, quando conheci Jean. Minha família mudou-se para um prédio bem ao lado da casa dele. Tínhamos a mesma idade e frequentávamos a mesma escola. Diferente de mim, Jean era um menino de rosto fechado. Parecia estar sempre aborrecido com alguma coisa. Como éramos vizinhos, desde o começo tentei fazer amizade. Ele nem olhava na minha direção. Aquele jeito emburrado me intrigava. Fiquei amiga de outras crianças e todas me diziam para não dar bola, pois Jean nascera de mal com a vida. Mas eu não conseguia entender o motivo para tamanha irritação. Ele morava numa casa bonita, com uma família estruturada. Até uma bicicleta maneira ele tinha! Por que não sorria de vez em quando, pelo menos? Resolvi tentar ajudá-lo, depois de passados três meses sem vê-lo sorrir uma única vez sequer.

     Como é possível uma pessoa não sorrir, não achar graça de nada? Nem um sorrisinho amarelo ele dava.

     Eu e meus amiguinhos nos reunimos e decidimos que devíamos agir. Meu vizinho precisava de ajuda, urgente! Arquitetamos um plano infalível. Com certeza daria certo. Sempre que alguém estivesse com ele, ou perto dele, contaríamos uma piada bem engraçada. Não teria como ele resistir.  

     O primeiro escalado foi Maurício. Contou uma piadinha de papagaio. Curtinha, do tipo que faz a gente trazer o riso, sem ele querer vir. Bom, ao menos conosco, porque se Jean sorriu foi por dentro. Os músculos da face nem se mexerem. Que desconcertante! Teríamos que planejar melhor. Ele realmente era duro de fazer rir.

     No dia seguinte, foi a vez de Pedrinho. Assim que teve oportunidade, lascou direto a pergunta:

     - Sabe a piada do Joãozinho?

     - Não! - respondeu Jean, desinteressado.

     - É assim, escuta só: “A professora pergunta pro Joãozinho, quanto são cinco mais cinco? Ele pensa um pouco, conta nos dedos e responde: dez. Ah, não vale contar nos dedos, diz ela. Coloca as mãos nos bolsos. Isso, agora responde, quanto são cinco mais cinco? Joãozinho conta em silêncio  e fala: onze, professora.”

     - Já acabou? Então eu vou indo, porque minha mãe está me esperando - falou Jean. 

     Incrível! Como não achou graça da piada? Joãozinho conta os cinco dedos de um bolso, o tiquinho no meio e os cinco dedos do outro bolso. Bobinha, é verdade, mas acho engraçadíssima. A primeira vez que me contaram tive um acesso e quase me mijei de rir. É, teríamos que mudar de tática, o caso dele parecia mais grave do que pensávamos. Agora tornara-se um desafio, faríamos ele rir de qualquer maneira. Nem que tivéssemos de fazer cócegas.

     Bem, não seria assim tão simples, como descobrimos depois.

     Durante a semana inteira nos revezamos, contando piadas, dizendo bobagens, fazendo brincadeiras do tipo "O que é uma bolinha vermelha escondida atrás da porta? - É uma ervilha envergonhada!"  Rárrárrá! Rimos todos, para ver se contagiávamos Jean.  Nada. Impressionante.

     Combinamos fingir que cairíamos no chão, escorregando em algo imaginário. Foi hilário. Fabinho fez que escorregou em uma casca de banana inexistente e se estatelou de bunda no chão. De novo, nenhuma reação. E olha que foi bem na frente dele. Jean era um caso de internação. Não entendíamos como a família dele não ficava preocupada, com tanta seriedade numa criança. Ele tinha apenas oito anos e não ria de nada. Já estávamos pensando em desistir de nossa intenção, pois tínhamos esgotado nossa cota de piadas, coisas engraçadas e tal. 

     Um dia perguntamos: "O que te deixa alegre, feliz, satisfeito? "Não sei, não me ocorre nada agora." - respondeu  ele, bem assim, como um homem sério, sem ainda nem ter crescido para tanto.

     Bom, talvez se a gente levasse ele num circo, vendo as trapalhadas dos palhaços, a gargalhada que estava presa se libertasse. O fato é que fomos desanimando. Não sabíamos mais o que fazer. Assim foi que desistimos e o deixamos em paz, pois nossa boa intenção já estava virando uma perseguição. Quem sabe, com o tempo ele aprendesse a sorrir. Afinal, o sorriso é nossa forma de expressar alegria de viver. E isso é algo que acontece naturalmente.

     Algumas semanas depois, já tínhamos nos acostumado com a cara amarrada de Jean. Estávamos todos juntos na frente da casa dele, papeando. "Bah, que coceira no umbigo" - falei. Para nosso espanto, Jean começou a repetir: "umbigo, umbigo, umbigo" e desatou a rir. Riu tanto, que chegamos a ficar preocupados. Rimos juntos, feito um bando de crianças felizes. Como todas as crianças devem ser, não é mesmo?

     Dizem que até hoje ele não pode ouvir a palavra umbigo, que cai numa risada convulsiva.

Rosa Mattos

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Descobertas

     Vitória arregalou os olhos, não cabendo em si de contentamento. E se coubesse, a alegria nem caberia na alegria e subiria faceira, indo fazer rir as nuvens.
     O jardim da casa nova era uma novidade nunca vista antes por ela. O apartamento pequeno, com vista para outros prédios, a fizera pensar que pessoas nascessem em blocos, flores só crescessem em vasos, pássaros vivessem apenas em gaiolas, gatos e cachorros morassem em sofás e tapetes e ... eventualmente em sua cama.
     Na pracinha onde costumava brincar, as flores viviam em grandes vasos de cimento. Agora, com as mãozinhas na boca de puro espanto, descobria que elas também nasciam do chão, direto da terra e cercada pela grama verdinha e fofa.
     Os pais, zelosos com a saúde da filha, resolveram comprar uma casa, pois queriam que ela tivesse contato com a natureza. Vitória apresentara sintomas alérgicos e o ar fresco iria lhe fazer bem - recomendações médicas - que trataram de seguir.
     Dando pulinhos, a menina explorou o terreno, gritando o tempo todo "olha! olha!". Com os pezinhos descalços, correu pela grama, tocando nas plantas e exclamando para os pais "como o pátio novo tinha um cheirinho bom".
     Para completar a alegria da filha, os pais montaram uma pequena barraca no jardim, para que Vitória pudesse brincar e se proteger do sol. Cansada com tantas novidades, a menina deitou e dormiu em seguida, com o rostinho corado e feliz. Então, sentiu algo subindo pelo braço, causando-lhe cócegas. Abriu os olhos e viu uma joaninha. A coisa mais linda que já vira. Que bichinho seria aquele? Não sentiu medinho. Amou a criaturinha. Colocou-a nas mãos. Alisou. Contou-lhe historinhas. Conversou bastante com a pequenina visitante, revelando-lhe todas as lembranças que seus três anos de memória foram capazes. Exausta, adormeceu, esquecendo a joaninha, que ficou passeando dentro da barraca.
     Quando acordou, já estava de pijama, deitada em sua cama. Era uma daquelas mágicas que amava mais que tudo. Quando dormia estava num lugar, quando acordava estava em outro. E os pais sempre por perto.
No dia seguinte, foi para o jardim brincar. Esperou pela joaninha, que naquele dia não apareceu. Contou para a mãe sobre o bichinho que parecia uma bolinha. A mãe riu muito e explicou para Vitória tudo o que sabia sobre joaninhas.
     Os dias correram. A menina cresceu. E como é próprio da vida, os momentos vividos vão ficando para trás, sem nunca terem saído de dentro.
Tornou-se uma linda jovem e bióloga dedicada. Adquiriu um gosto inexplicável por joaninhas. Não sabe dizer a origem de sua afeição, mas sempre que encontra algum objeto com formato do bichinho, fica admirando, fascinada. Já comprou adesivos para seu notebook, mouse, pen drive, agendas, estojos, cadernos e vários utensílios com o tema. Seu atual sonho de consumo é um celular japonês, com designer imitando uma joaninha.
     E quando, por curiosidade, perguntam a ela o motivo desta sua preferência, ela encolhe os ombros e responde:
     - Sei lá. Gosto é gosto!
Rosa Mattos

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O que é o silêncio?

1
O grande cartaz na parede esquerda, ao lado das escadarias do metrô, chamou a atenção de Emily. Leu as palavras gigantes e continuou caminhando apressada, pois estava atrasadíssima para um compromisso importante.
Seus pés seguiram o curso, enquanto sua mente repetia a pergunta. "O que é o silêncio?" Ora, o silêncio é a ausência de sons - respondeu-se.
Num primeiro momento considerou a questão simplória e extremamente óbvia. No entanto, uma intrigante interrogação persistiu. Seria o silêncio mais do que a falta de ruídos? Talvez ela devesse analisar por outro prisma. Poderia a falta de sons representar o medo, por exemplo. O silêncio talvez seja o mistério, o embaraço, o temor, a precaução, o respeito, a veneração. Silenciar pode ser um subterfúgio, camuflado por aparente reflexão - ou educação? De qualquer modo, o silêncio instiga e exaspera, tanto quanto sossega e aniquila.
Pessoas muito quietas inspiram curiosidades: "Em que está pensando?" Tendo nós mesmos como parâmetro, concluímos que se alguém não fala é porque está escondendo algo. Deduzimos desta forma porque estamos realmente sempre pensando e escondendo algo. Calamos por fora, porém continuamos falando por dentro. Alguns pensam e não revelam - ou afirmam não estarem pensando em nada. Agonizante! Ora, mesmo quando não tem importância alguma, importa. Queremos saber!
Calar é passar a vez, para poder escutar. No entanto, nem sempre quem não está falando, está escutando. É comum, muitos falarem e ninguém se ouvir - continuou Emily, em seus devaneios.
Deveria ser assim, ao menos. Quanto mais ansioso, mais falante, então? Ao pensar isso, Emily riu interiormente. Ela se considerava boa ouvinte, embora ficasse reorganizando seus pensamentos, enquanto o interlocutor se expressava. Normal. Todo mundo faz assim, não é mesmo? É difícil desligar nosso estímulo cerebral enquanto ouvimos. Escutar o outro com cem por cento de atenção - quem consegue? Seria como entrar na cabeça de quem está falando. E para isso precisaríamos abandonar a nossa. Não é fácil esquecermos de nós e nos deixarmos de lado.
Um minuto de silêncio. Mesmo em eventos onde pedem um minuto de silêncio, os sons não cessam. Emily já estava confortavelmente instalada na cadeira do dentista, sem no entanto deixar de meditar sobre o assunto. Haveria uma resposta para a pergunta do cartaz? Talvez fosse uma chamada para lançamento de algum produto novo. É mesmo!... nem lera o que estava escrito nas letras menores. Passaria por lá novamente e mataria a charada.
Atravessou a plataforma do metrô quase correndo, impulsionada pela curiosidade em saber do que se tratava o anúncio. E quando postou-se em frente ao cartaz, percebeu que nas letras menores estava escrito apenas: "Você sabe?"
Emily não podia negar que ficara decepcionada. Sentiu-se vítima de uma pegadinha.
E depois daquele dia, passou a pensar umas dez vezes antes de pensar demais.

Rosa Mattos

terça-feira, 12 de julho de 2011

Impulsos

Hoje decidi deslizar como uma sereia
Pelas espumas dos acontecimentos
Colocar num barquinho meus medos
E deixar que as corredeiras os levem

Abrirei as comportas dos sentimentos
Represados por riachos de precaução
Sufocados em extensos receios vãos 
E por tudo mais que achei importante

Esse rio de ajuizamento me escondeu
Gastou meu querer e quase me secou
Por pouco não me tornei um advérbio
Nunca! Jamais! Eu vivia de negações

Resolvi escorregar em queda-d’água
E nadar a favor e contra as correntes
O que poderá ser pior que não viver?
Viajarei assim e me encharcarei toda

Ao menos hoje... Amanhã, já não sei

Rosa Mattos

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Essência da Felicidade

Vigiado pela paisagem verdejante dos pampas
Assentou duas achas de lenha no fogo de chão
Arrumando melhor o chapéu de palha trançada
Que teimava em sair ao minuano limpo e seco

Tirou os arreios do cavalo e alisou-lhe o lombo
Assobiando a cantiga em parceria com o vento
Que se espalhava pelo mar verde das coxilhas
E se ia embora espantando o frio e a quietude

Rodeado pelo cheiro das reses que pastejavam
Estendia o corpo cansado da lida e mirava além
Construindo sonhos e planícies de simplicidade
No crepitar das chamas a natureza se enlaçava

Fechou os olhos e pensou, antes de adormecer
Como um homem pode ser feliz com tão pouco
Bastava-lhe o cheiro da terra e o calor da vida
Que brotava em torno das abas de seu chapéu

Rosa Mattos